Pequena lição de gramática

A solidariedade e o respeito ao próximo não são patentes de nenhum credo. Embora muitas religiões reclamem para si o direito de defesa dos princípios considerados mais nobres, estes mesmos princípios não lhes pertencem.

Houve um tempo, antes de a minha filha nascer, em que eu acreditava que uma religião, ou alguma religião, seria necessária para a formação de uma criança. Hoje, não vejo as coisas desta forma. Isto porque minha atual concepção de religiosidade é de tal modo íntima e pessoal, que eu não creio que qualquer um dos modelos existentes seja suficiente, às vezes até necessário, ao desenvolvimento religioso da minha pequena.

A religiosidade enquanto modo de ligação ou acesso ao que é da ordem do transcendente, é uma coisa que para mim é cara. Pode haver os que me considerem mística e, por vezes, até bem estranha, mas não posso ignorar a presença constante do fato espiritual no meu cotidiano. Não é simplesmente uma questão de fé.  É uma espécie de hipertexto escondido na minha página pessoal que pode reconfigurar meu modo de ver e agir no mundo em todos os cenários em que tenho um papel qualquer, inclusive quando eu estou “apenas” dormindo.

Um exemplo. Quando eu tinha 8 ou 9 anos lembro de me pegar pensando seriamente sobre a questão da morte. Até esta época eu nunca tinha perdido ninguém próximo e nem sequer tinha ido a um funeral. No entanto, refletia a respeito e comecei a acariciar a ideia de que somos nós que determinamos quando devemos morrer, que a morte seria mais um produto de uma escolha do que uma simples fatalidade. É verdade que é certo que um dia morreremos, mas o limite de nossa vitalidade seria um ato da própria vontade. Que isto não se confunda com o suicídio… Até hoje esta ideia faz muito sentido para mim, embora ela tenha sido pensada em tão tenra idade.

O que mais me incomoda nos principais modelos religiosos existentes é a sua exterioridade: diretrizes de caráter coletivo; rituais; processos; proselitismos; caráter messiânico; apropriações indevidas de ideias, valores e perspectivas sobre o que deveria pautar as relações sociais; determinações do que é sagrado e do que não é. Quanto mais exterioridades, menos respeito parece haver pela auteridade, isto porque muita exterioridade parece imposição de representação. Não é novo o que eu vou dizer, mas infelizmente, muito atos de desrespeito ao próximo aconteceram e ainda acontecem em nome de uma crença religiosa.

Sinceramente, rezo para que um dia os seres humanos sejam capazes de se respeitarem independentemente de suas crenças. Enquanto isto não acontece, tentarei educar minha filha a respeitar todas as que existem. Espero, contudo, que ela não ignore o fato de que esta mesma multiplicidade religiosa, que deve ser respeitada, é principalmente uma amostra de como a espiritualidade pode ser uma maneira muito particular de lidar com o infinito em nós. Que minha pequena seja muito bem-vinda à descoberta do seu próprio universo sagrado de possibilidades. Afinal, religião é um verbo que se conjuga muito bem na primeira pessoa do singular.

5… 4… 3… 2…

Neste exato momento faço contagem regressiva para entrar de férias. Não quero ter que pensar no meu cotidiano, colocar roupas de trabalho ou planejar o que fazer para o artigo que vou submeter àquela revista. Estou cansada sobretudo da minha rotina. Obviamente que não estou cansada da parte da minha rotina que inclui Isabel, pois cada dia com uma bebê de um ano e meio é sempre uma novidade.

Agora, por exemplo, minha filha está com a mania de pegar meus sapatos — os de salto alto, é claro — e sair andando pela casa com eles. Já lhe disse que se ela, com esta idade, já consegue andar com tanta desenvoltura com sapatos que são quatro ou cinco vezes maiores que os seus pés, imagine quando ela chegar aos quinze? Algo me diz que essa menina vai me dar trabalho.

Desejo ótimas férias ou continuação de bom trabalho para os que, respectivamente, vão ou ficam!

Portugal, o Estado e a falta de jeito

Há tempos venho refletindo sobre o Estado e a mentalidade do cidadão em Portugal. Obviamente que isto dá muitas teses de doutorado e não consigo expor tudo o que há num post. Mas vamos ao que me interessa…

Sou brasileira e na minha vida, efetivamente, o Estado brasileiro esteve realmente muito presente na minha educação. Só. Nunca contei com o Estado para muito mais além disso. Nos outros campos onde o Estado esteve envolvido durante os 36 anos e meio em que lá vivi, de modo geral, tem sido mal sucedido. É verdade que tivemos uns 30 anos de ditadura, mas não percebo este estado autoritário como bem sucedido do ponto de vista de sua influência na minha vida cotidiana, pois, exceto mesmo pela minha educação, como disse, nunca contei com o estado para mais nada.

Fico realmente aparvalhada quando formam-se vários movimentos que receiam uma “espécie de comunismo” no Brasil. Sinceramente, não vejo qualquer possibilidade de haver estado comunista ou algo que se assemelhe no Brasil. Parece incrível o que vou dizer, mas a estrutura do “jeitinho” que nos parece um defeito quando vamos aos países desenvolvidos é também um trunfo que temos. O “jeitinho brasileiro” é a possibilidade de contínua e imprevisivelmente reverter o fluxo das coisas e alterar os resultados. Nos dias de hoje, não há nada mais original e à frente do tempo. No Brasil, temos é que aprender a utilizar isto de modo a integrar a todos, para construirmos uma nação forte. Ressaltando: nação e não Estado forte. Isto porque a idéia do “jeitinho” seria muito interessante se utilizada com vistas ao coletivo também e não voltada exclusivamente para o ganho pessoal – até porque, do ponto de vista pessoal, no Brasil, sempre foram muito poucos os que ganharam com este “jeitinho”.

Estado forte, provedor, presente, tal como na Inglaterra, França… e até em Portugal pode ter tido seu lado bom. Mas acho que precisamos de um lugar no meio entre a ausência e a enorme presença do Estado. A ausência do estado causa danos à cidadania muito difíceis de lidar. Pode-se ver isto na história do Brasil e, atualmente, vemos o extremo do Haiti. Contudo, creio que sua presença maciça também causa muitos “traumas”.

Como conciliar interesse pessoal e coletivo? Sinceramente, não sei ainda, estou na busca de entender esta questão. Já sabemos que a resposta não está nem no comunismo e nem no liberalismo. Mas sei que, aqui em Portugal, paira um ranço de uma história que insiste em se reinventar e me leva a temer meu futuro e o de minha filha. Não há nada o que temer especificamente, pessoalmente, nenhuma ameaça, se é isso que se quer saber. Mas eu temo por não saber lidar com o fato de que o Estado aqui é previsível quanto a sua disposição em dificultar as coisas e tomar partido no nosso lugar.

Além disso, em Portugal, há uma postura de inflexibilidade que independe de partidos políticos ou de posição social, que independe da figura de poder que lá esteja, pois parece ter penetrado na alma de grande parte dos que nasceram e foram criados aqui. Admiro cada vez mais meu pai que, ao ver este cenário reproduzido dentro da sua casa, resolveu dispor do futuro de modo mais criativo para si e, consequentemente, também para mim. E é provável que minha filha também tenha muito a ganhar com isto.

Decididamente, falta jeito a Portugal. Dava-lhe jeito, como se diz por aqui. Acho que os que tem esta espécie de jeito vão-se embora. Talvez eles pensem, tal como Eça de Queiróz, que Portugal não é um país, mas apenas um sítio, um lugar e, em última instância, uma espécie de feudo onde já existe senhor e nada mais se pode fazer além da mera vassalagem.

Sê teu filho

Estou na sala. Vejo tevê, o filme Mentes que brilham, da Jodie Foster que, pelo título, pensava que era o do gênio esquizofrênico. Ok, a confusão começa a não ser tão má.

Isabel sassarica pela sala. A cada x tempo ela pára o que faz e me observa. Olha nos meus olhos, eu lhe devolvo o olhar e sorrio. Ela me devolve o sorriso e continuamos a fazer o que fazíamos: ela volta a sassaricar e eu a ver o filme da Jodie Foster. O filme, porém, não me absorve ao ponto de eu não pensar e me pego a imaginar a importância dos meus olhares e sorrisos a cada vez que Isabel me observa. Vê-se facilmente o valor que tem para ela aqueles breves instantes de atenção e troca.

Amar também é ter atenção aos pequenos detalhes, é um bater de cílios na direção certa. A onda tissunami emocional que isto gera é incompatível com a linguagem e com quaisquer experiências prévias.

Viver a maternidade é mesmo um presente único que a vida nos concede.

Um 2010 vivido plenamente, é o que desejo a todos.

Corpo e espírito

Esta semana um professor católico que trabalha aqui no instituto falava a uma aluna acerca das relações corpo-espírito, em particular do modo como o espírito sofre os constrangimentos do corpo. Este tema está longe de ser uma novidade para mim. Em minha formação ecumênica sempre me deparei com esta questão. Mas, nunca, creio eu, me senti, eu-espírito, tão profundamente suscetível às vicissitudes impostas pelo meu corpo.

Não é simplesmente a idade, mas eu diria que é sim a idade e meu atual status de adulta-madura-responsável-independente-profissional-mãe-consciente-espiritualizada-decidida-autônoma-imigrante-cidadã que pesa toneladas sobre a minha alma. A vida, com tudo o que tenho direito – dia-a-dia, responsabilidades, corpo, relações, hemisfério do planeta, continente, distâncias, timing, karma, parece estar conspirando para a minha própria redenção espiritual. Logo, estou física, psíquica e espiritualmente muito cansada. No entanto, o corpo cansado e a vida sobrecarrecaga deixam qualquer espírito inseguro e reticente. Isto não é nada comparado com muitos descaminhos que existem por aí. Mas, a cada um seus próprios passos e fardos.

Claro que já estive cansada na minha vida. Isto já me aconteceu várias vezes. Contudo, hoje, preocupo-me mais com meu bem-estar físico e mental que antes, pois existe Isabel.

Ontem, por exemplo, me peguei preocupada com a possibilidade de eu vir a lhe faltar antes de ela ser adulta. Se isto acontecer, acredito que ela ficará muito bem com o pai, mas preocupo-me com as outras pessoas que podem diretamente influenciar na sua educação. Eu sei que estou longe de ser o exemplo perfeito de ser humano para ela. Mas, garanto, minha idéia de educação envolve um conjunto de aspectos que sei que a maior parte dos que ficarem ao seu lado não ligarão nem um pouco. Mas, também sei, este tipo de preocupação é apenas uma das muitas vicissitudes que meu corpo impõe ao meu espírito.

O que me vale agora é que reuno um arsenal de idéias, vivências, técnicas, livros, músicas, reflexões, conhecimentos deste e d’outro mundo que me levam a ver tudo ainda de forma otimista e confiante. Além disso, a cada dia que acordo, respiro fundo e oro para que tudo corra bem até o final do dia. Ah, e é claro, vejo Isabel sorrindo e tudo fica muito diferente.

Não sei como fazem os que não crêem em nada para além deste mundo e nem têm alguém que amem. Mas, suspeito de que seja o psiquiatra que acabe virando o centro de suas atenções…

Doida para andar